quinta-feira, 9 de junho de 2011

A Cailleach - Por Corujão


Cailleach fala:

Meus ossos são frios, meu sangue é ralo. 
Eu busco o que é meu. O busco o que ainda não foi semeado. Eu busco os animais para cavernas quentes e mando meus pássaros para o sul. Eu ponho meus ursos para dormir e mudo o pelo de meus gatos e cães para algo mais quente. Meus lobos me guiam, seu uivo anuncia minha chegada. Os cães, lobos e raposas cantam a canção da noite, a serenata da Anciã, a minha canção. 


Eu disse sim à vida e agora digo sim à Morte. E serei a primeira a ir para o outro lado.
Eu trago o frio e a morte, sim, pois este é meu legado. Eu trouxe a colheita e se você não colheu suas maçãs eu as cobrirei de gelo. Após o Samhain, tudo o que fica nos campos me pertence.






Por Marcela Badolatto

A Cailleach é uma das mais importantes e mais imponentes deidades 

dentro da mitologia das regiões gaélicas da Escócia. Mas ela é 
também uma figura complexa e inconstante, sendo por vezes mais 
adequado referimo-nos a ela como parte de um conjunto de divindades
 ou espíritos destrutivos denominados Na Cailleachan, também 
conhecidas como “As Bruxas da Tempestade”.
A palavra cailleach significa “anciã” e deriva do Irlandês Antigo, 

caillech, véu (em irlandês atual, caille), o que evidencia uma proximidade 
ou mesmo derivação do latimpallium, cujo significado também é véu.
 Essa possibilidade é corroborada pela tendência das línguas gaélicas 
de trocar o ‘p’ pelo ‘c’ em palavras estrangeiras.

No antigo poema irlandês, Aithbe dam Bés mora ou ‘O Lamento 

da Anciã de Beare’, uma figura que podemos facilmente identificar
 com a Cailleach fala:

(…) sech am tróg, am sentainne.
Ní feraim cobra milis;
ní marbtar muilt dom banais;
is bec, is líath mo thrilis;
ní líach drochcaille tarais.
Ní olc lim
ce beith caille finn form chinn;(…)

Não sou apenas miserável, mas sou uma velha
Não falo palavras adocicadas,
carneiros não são abatidos
para o meu casamento,
meu cabelo é escasso e cinzento,
ter um pobre véu sobre ele não causa desgosto.
Ter um véu branco em minha cabeça
não me causa tristeza.



A origem da palavra cailleach como “velada” pode ser um indício

 de sua associação com a imagem da freira. Na Irlanda antiga esse
 era um termo que trazia uma forte conotação de uma mulher que 
nunca se casou ou que se casou com Cristo, e com a ascenção
 do cristianismo as personagens mitológicas e dedidades
 pagãs foram sendo transformadas e adaptadas para serem aceitas 
pela nova religião. Em contrapartida, em áreas mais remotas,
 a cultura gaélica preservou a figura da Cailleach como deusa e regente
 do inverno, e a associação dela com o véu é muito mais significativa
 em sua imagem originalmente pagã: a imagem de uma velha feiticeira.
 No folclore escocês, ela é retratada como uma mulher muito velha, 
enorme, com um só olho, penetrante e afiado como o gelo, a pele 
escura, azul, os dentes vermelhos como ferrugem, os cabelos brancos
 e um véu sobre eles. Todas suas roupas eram cinzentas e ela jamais 
era vista sem seu manto malhado sob os ombros.

A Cailleach é uma divindade associada às forças mais brutais e

 destrutivas da Natureza, especialmente às forças do Inverno e 
da tempestade. Seu titulo mais conhecido é Cailleach Bheur. 
Este epíteto nos dá algumas possibilidades de interpretação: 
a palavrabheur é o genitivo de beur, cujos significados são “pontiagudo,
 afiado” assim como “claro, limpo”. É também a palavra para pico 
ou local de grande altitude. Esses significados ligam-se diretamente
 aos aspectos invernais dessa divindade, às características do gelo, 
da neve e das tempestades. A Cailleach também é, dentro das sobrevivências 
culturais, a construtora das montanhas e colinas, conectando-a,
 assim, aos lugares altos.
Outra possibilidade da etimologia do nome Cailleach Bheur encontra-se

 no registro mais antigo sobre ela, o já citado Aithbe dam Bés mora,
 O Lamento da Anciã de Beare. Esse poema, datado, aproximadamente, 
do ano 800, mostra a grande influência e passagem da mitologia
 irlandesa para as regiões da Escócia com a instalação do reino de 
Dál Riada. O título Anciã de Beare é, em irlandês antigo, Caillech
 Bérri, um possível cognato deCailleach Bheur.

 

Apesar de este ser seu nome mais
 difundido, ela é conhecida por
 muitas outras denominações em 
diferentes regiões. Na maior 
parte da Escócia, especialmente 
nas Highlands, ela é chamada
 Beira, Rainha do Inverno, enquanto
 que na lenda irlandesa, ela intitula-se
 Buí. Em algumas partes da Escócia
 é também chamada Mag Moullach e
 nas Lowlands de Gyre-Carline, 
sendo carline a palavra do Scots que
 corresponde a ‘mulher velha’. Na 
Ilha de Man é chamada de Caillagh
 ny Groamagh, Anciã Sombia, e Caillagh 
ny Gueshag, Anciã dos Feitiços, e é tida
 como um espirito da tempestade e do inverno, que aparece que no dia 1 de
 Fevereiro prenunciando como será o restante do ano. Um dia ensolarado
 denuncia que o ano será de má sorte. Na Escócia, a primeira colheita 
é dita como abençoada e a última amaldiçoada, recebendo o nome de
 a’chailleach. Outro nome interessante que ela recebe pelos habitantes 
da costa noroeste é Gentil Annie. Um apelido que pode ser sarcástico ou
 apaziguador, já que os pescadores atribuem a ela os ventos furiosos 
do começo da primavera.
Mas tradicionalmente a Cailleach não é apenas uma divindade 

destruidora. Como todas as deidades celtas, ela não possui um
 único aspecto ou função, mas uma multiplicidade. Sendo assim, a 
Cailleach é também uma deidade criadora. Tradicionalmente, ela 
é conhecida como sendo a mãe de todos os Deuses e Deusas, e também
 a responsável pela criação dos lagos, rios, montanhas e colinas.
 Uma das histórias antigas sobre a formação de alguns loch escoceses 
conta que Beira, Rainha do Inverno, tirava água todos os dias de 
uma fonte em Ben Cruachan, na região de Argyll. Todos os dias, ao 
nascer do sol, ela destampava a fonte e depois a tampava de novo 
quando o sol se punha. Um certo dia, por descuido, ela esqueceu-se de
 tampar a fonte e a água transbordou e jorrou, descendo pelas
 montanhas, rugindo como um mar furioso. E foi assim que veio a 
nascer o Loch Awe. Em outra ocasião, uma de suas empregadas,
 chamada Nessa, ficou responsável por destampar e tampar
 outra de suas fontes, localizada no condado de Inverness. No 
entanto, uma certa tarde, a moça de atrasou para cobrir a 
fonte e, quando ela aproximou-se, as águas saltaram em sua direção,
 fazendo-a correr por sua vida. Beira, sentada em Ben Nevis, a
 montanha que era seu trono, sentenciou: “Você negligenciou seu
 dever. Agora você correrá para sempre e nunca deixará a água.” 
A moça, então, transformou-se no Rio Ness e desembocou no meio de 
duas montanhas, formando assim o Lago Ness.

A criação das duas montanhas que rodeiam o Lago Ness também 

foi atribuída à Cailleach. Uma das razões pelas quais Beira construía
 as montanhas era para servir-lhe como degrau, por seu enorme
 tamanho. Outra razão era para servirem de casas para seus filhos 
gigantes, que eram chamados de Fooar, um possível cognato do
 irlandês Fomóiri. Os Fomóiri são uma tribo de Deuses usualmente
 ligados ao mar, mas existem também fontes onde são associados a 
torres de vidro, que podemos interpretar como uma metáfora para
 os icebergs. Alguns deles, como Indech, um de seus reis, são ditos
 como filhos da deusa Domnann, posteriormente chamada de Domnu,
 uma figura obscura e pouco citada no Lebor Gaballa Érenn, o manuscrito 
que conta a chegada dos deuses à Irlanda e um dos textos mais 
importantes da mitologia irlandesa. Embora não haja muitas evidências
 que digam ter sido De Domnann mãe de todos os Fomóri, a relação
 entre ela e a Cailleach reforça-se ao vermos ambas como divindades
 primordiais que regem as forças naturais mais selvagens e indomáveis.


O fato de ela receber o nome de Gentil Annie também nos permite

 fazer algumas associações interessantes. A Cailleach é conhecida
 como a mãe dos Deuses e Deusas. Uma idéia muito difundida
 é que, dentro da mitologia irlandesa, esse papel seria atribuído a
 Dana ou Danu, como deusa progenitora das divindades da tribo,
 os Tuatha Dé Dannan. No entanto, nos estudos dos textos irlandeses
 uma confusão costuma ser feita entre os nomes Dana e Ana. O nome
 Dana é uma especulação a partir do possessivo Dannan, não aparecendo
 como mãe dos deuses no Lebor Gaballa Érenn, nem em nenhum outro 
manuscrito. Por outro lado, em algumas versões, a figura que aparece 
como a mãe dos Deuses, é Annand, que o Lebor Gaballa Érenn aponta 
como sendo o nome da Mórrighan, já que An Mórrighan, de acordo com 
a maioria dos estudiosos, significa A Grande Rainha (do Irlandês antigo mor, 
‘grande’ e ríogain, ‘rainha’), o que se encaixaria melhor como título, não como
 nome. O Lebor também indica como sendo dela as Dá Chích Anann, as Tetas
 de Ana, duas colinas redondas localizadas na província do Munster, o que a 
liga com as montanhas e colinas.

As características em comum entre a Cailleach e a Mórrighan são bastante

 fortes: a ligação com o tempo de morte, escassez, mas também com 
a força do nascimento. As figuras aproximam-se, inclusive, na descrição
 física, especialmente quando observamos o seguinte trecho do final da Batalha
 de Mag Rath:“Sobre sua cabeça guincha
Uma bruxa magra, rapidamente pulando
Sobre a posição das armas e escudos;
Ela é a grisalha Mórrighan.”

Entretanto, em outras redações do Lebor, a deusa que é tida como

 mãe dos Deuses é Brigit, conhecida na Escócia como Brìde. Interessante
 notar que na mitologia escocesa, a maior parte das lendas relata Brìde
 e a Cailleach sempre em oposição. Enquanto a Cailleach rege o período 
escuro do ano, Brìde rege o verão e os dias claros. No entanto, algumas
 outras lendas as retratam como sendo a mesma.
O mito conta que ela nunca morria de velhice, pois todo começo de 

primavera ela bebia as águas mágicas da Fonte da Juventude nas 
Ilhas Verdes do Oeste. Algumas versões falam que ao beber dessa fonte, 
ela tornava-se uma jovem de cabelos loiros, bochechas rosadas e olhos
 azuis, vestindo o manto verde das pastagens e coroada com as mais 
diversas flores. Isso não explica apenas a possível identificação dela 
com Brìde, mas mostra, principalmente, a capacidade de regeneração 
dessa deidade e sua profunda ligação com os ciclos sazonais.

Nas regiões mais rurais da Escócia ela é celebrada em seu festival, o 

Latha na Cailliche, que ocorre por volta de 24 ou 25 de Fevereiro, visto
 como o dia em que seu reinado de inverno termina, dando lugar ao reinado 
de verão de Brìde.

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